Sobre o atendimento em uma mercearia

O balcão é o intermediário da civilização

Se se pode dizer que há um comércio extremamente personalizado ao sabor do cliente e do dono (perceba a ordem das palavras), este comércio é a Mercearia. Os clientes na grande maioria das vezes não são apenas transeuntes, mas conhecidos, vizinhos, crianças do bairro, religiosos, enfim, amigos em maior ou menor medida do dono do estabelecimento. E isso é tão marcante que o sintoma do desaparecimento das mercearias foi justamente a perda da personalização do cliente, que passou a ser tratado de forma universal de acordo com os protocolos adotados pelas grandes redes. Hoje sabe-se tudo sobre a pessoa do Cliente, incluindo seus gostos e até a forma como se movimenta em um supermercado (acredite se quiser, mas existem padrões em tudo isso), menos seu nome, onde mora e como vão as suas finanças difíceis de assalariado. O próprio cartão de crédito e débito, na medida em que substitui o papel da caderneta do fiado, quando as dores de cabeça são transferidas para a intermediadora, contribui para esta despersonalização e para a quebra de confiança que era uma característica das transações comerciais da civilização. Antes valia a palavra, não a atual segurança dos intermediadores, que afinal lucram sobre esta destruição da confiança por meio dos juros compostos.

O balcão da bodega é o limite das responsabilidades e deveres: do bom atendimento e da preferência da compra, do pagamento e do recebimento, da confiança que se torna mútua entre merceeiro e freguês. Por isso ele é a marca do estabelecimento e não se pode dizer com toda verdade que todas as mercearias o são sem este objeto que se interpõe entre uma pessoa e outra. Na maioria das vezes, atualmente, temos mini-mercados e não mercearias. Não à toa uma moda retrô (com ressurgimento de barbearias, charutarias, tabacarias, alfaiatarias especializadas e etc.) vem com aquilo que as novas gerações não puderam experimentar: o que transcende o simples negócio, a troca mútua de favores e valores, a amizade.

Baseado no que acima falei, abaixo descrevo algumas sugestões observadas ao longo de 25 anos de imersão em comércio, onde irei comentando as particularidades de cada tópico e explicando os limites para cada procedimento.

Atentem para as aparentes loucuras que são típicas do mundo comercial e para com as quais o merceeiro terá de acostumar-se por lidar com este fator imprevisível que é o ser humano.


  1. Não preste muita atenção a seu cliente: não há nada pior para um cliente do que a vigilância constante de um merceeiro, pois não basta que o espaço controlado (balcão, salão central aberto, dimensões diminutas da bodega) oprima o pagante, ainda por cima um olhar "que tudo vê" tenta controlar os passos de quem está acostumado aos ares de liberdade dos shoppings centers. Hoje lida-se com pessoas acostumadas à vigilância eletrônica, não ao olhar atento do comerciante. Por isso, deixe o cliente à vontade, pois você, conhecedor que é de seus fregueses, certamente saberá onde começar a desconfiar e até que ponto não estará importunando o visitante com uma insistente dedicação. Dê um bom dia e leia o jornal, deixando em paz os que lhe darão com alegria o seu sustento.
  2. Agrade com o pouco para depois ganhar muito: o comércio tem dessas coisas incompreensíveis (senão aos olhos piedosos), onde quanto mais você der mais lucrará. Por isso, não seja um fanático calvinista mesquinho: se a pesagem de um saco de grãos superar um quilo, fale algo como "o resto é agrado" ou "fica de brinde". Se as frutas estão perto de passar e seu cliente chegou bem ao fim do expediente, encha a sacola dele com aquelas riquezas que correm o risco de não serem aproveitadas. Se seu cliente só tem mercadorias físicas para oferecer como paga, avalie e troque pelos seus produtos, pois ele dará valor à atitude honrada. Este arroubo de caridade lhe fará bem à alma, não lhe dará prejuízo palpável e lhe fisgará o cliente. 
  3. Troque produtos sem pestanejar: para que seu cliente venha trocar um produto, ainda que ele seja conhecido como o grande empulhador do bairro, deve ter um mínimo de razão. Coloque-se no lugar dele: talvez ele tenha motivos; talvez pagou razoavelmente por algo que não o agradou. Troque, troque o que puder (claro, não a ponto de lhe falir), pois sua fama, que é o que importa, aumentará com isso. Todos irão comentar como sua mercearia é boa, já que você se dedica ao cliente e não tem fila para compras, além do preço dos produtos ser, afinal, igual em qualquer lugar.
  4. Conheça todos os seus produtos até a raiz: quando você disponibiliza algo para ser vendido, entende-se que você conhece o produto e a marca. Sabe o cheiro, o sabor, o valor, enfim, tudo aquilo que entrará na sacola do freguês. Por isso, é fundamental dedicar um tempinho ao sadio exercício da leitura de rótulos, que lhe darão informações preciosas para que você possa apresentar ao cliente o quão boa é aquela vassoura de palha feita na sua cidade ou aquele molho de tomate de primeira qualidade feito em São Paulo. E nem precisar temperar qualquer explicação com adjetivações ocas; basta dizer de onde veio e que você só adquire aquele produto. O cliente entenderá bem a mensagem. 
  5. Crie empatia: não seja um poste, que responde um bom dia com cara de pão seco. Os merceeiros são reconhecidíssimos pela fineza de suas brincadeiras e ironias, pela sua simpatia e pela comiseração com que atendem e ouvem as reclamações da vida de seus clientes. Se podemos dizer, é algo psicológico: são pessoas que estão atrás do balcão, aparentemente sem trabalhar, para lhe ouvir e lhe atender; pessoas boas, gentis, que podem dar um minuto de atenção ao freguês emburrado com a carestia e inflação que sempre corroeram seu bolso. Por isso, pergunte como vai a família, se todos estão bem com a graça de Deus, etc. 
  6. Não seja mesquinho: a mesquinharia não é somente o não dar a mais no ato da compra, conforme descrito acima, mas a perseguição implacável dos centavos. É quando o merceeiro não deixa para lá os R$ 0,10 centavos da última compra de R$ 50,00 ou quando reclama na frente do cliente que o empregado está desperdiçando vassoura varrendo a calçada do estabelecimento. É quando o merceeiro dá balinhas ao invés de moedas, ou comete o pecado capital de dizer: "fico te devendo 0,10", uma dívida que só um outro muquirana cobrará ou um cliente insatisfeito lembrará, claro. Seja liberal para com os detalhes inelutáveis e guarde o essencial.
  7. Dê esmolas: a esmola edifica, santifica, acumula no céu bençãos indescritíveis, cobre uma multidão de pecados com a generosidade de Deus. Não esqueça de onde vem seu pão de cada dia e doe para pedintes moedas e mercadorias.
  8. Só deixe de receber por um produto em regime de exceção: amigos, amigos, negócios à parte. Essa máxima é intocável no comércio e você não poderá desconsiderá-la a fim de manter tudo na devida ordem. Você vende mercadorias e é justo que se lhe paguem, inclusive pelos familiares e amigos. Seu sustente daí provém. Tente não criar hábitos estranhos neste sentido. 
  9. Se comprometa a ter o produto sugerido pelo cliente num prazo recorde e se penalize caso não consiga: como diz nosso pai São Bento, auscuta fillii (Escuta, filho…): um dos maiores empresários de nosso país, o sr. Francisco Matarazzo, começou sua carreira no Brasil com uma mercearia na cidade de São Paulo e uma regra de ouro que ele mesmo se impunha era a de que o cliente tinha de achar o produto que queria no seu empório, no máximo até o dia seguinte. E ele obedecia escrupulosamente ao princípio, fazendo o impossível para conseguir a porca do parafuso de 5,9 polegadas de ferro galvanizado que o Zé da Feira pedisse. E por quê? Porque não há nada mais decepcionante do que necessitar de algo, ter o dinheiro para pagá-lo, procurar na venda mais próxima e receber um “não tenho essa porca, mas tenho esse prego, se servir” como resposta. Se você por mais de uma vez não tem o produto desejado mas a outra mercearia tem, por qual motivo seu cliente perderá tempo indo até você da próxima vez para “tirar a dúvida”? E assim Matarazzo chegou onde chegou.
Espero que tenham apreciado as dicas e conto com seu comentário e sugestão para a edição deste texto.

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