O papel da mercearia na família



A mercearia pode ser considerada uma das grandes escolas de civilidade no Brasil, como bem atestaria um Gilberto Freyre na sua obra Ordem e Progresso. É que não é apenas uma casa comercial: lá o público e o privado se imiscuem, como tantas coisas no Brasil, mas gerando bons valores ao invés de privilégios ou corrupção da alma. O pai educa seus filhos, perante os fregueses amigos, ensinando-os a obterem, do trabalho honesto e judicioso, o seu sustento e a garantia para seu futuro.

Desde cedo as crianças começam a participar da vida de uma bodega, como aconteceu conosco: ajudam na limpeza, na arrumação das prateleiras, no empacotamento dos víveres, na organização do estoque e nas entregas. Sob os olhares atentos do patriarca, começam a alçar pequenos voos no caixa e no planejamento das compras, quando o merceeiro pede que vejam quantas unidades de linha da cor branca ainda têm, ou quando manda buscar uma moeda de 0,25 centavos na gaveta para dar o troco do freguês.

Duas coisas, em especial, me atraiam na mercearia de meu avô: a máquina de moer café, que exalava um cheiro forte e delicioso quando acionada (pesei os grãos e vendi muitos pacotes assim) e a balança Filizola, que girava como um brinquedo quando eu pressionava o prato sem dó. Lembro até que o indicador ia ao final, batia em uma espécie de borracha, para depois ricochetear. Além disso, apenas uma vez, mas inesquecível, o ato de encher garrafinhas com cachaça nova de qualidade foi, literalmente, inebriante: o cheiro de cana-de-açúcar da Aguardente Rainha era muito agradável e eu me voluntariei com prazer para manusear o líquido caro num grande balde amarelo. Busquei com meu pai no engenho, estandardizei e engarrafei artesanalmente.

Fica para a prole não apenas experiências do ponto de vista técnico, pois que o universo do comércio ensina bem mais. Antecipa-nos o mundo dos estultos, que é o mercado; melhora nosso trato com os diferentes seres humanos (inclusive dos dois tipos de fregueses mais frequentes: os ébrios e os loucos); estreita os laços familiares, ensinando a necessidade de se viver em comunidade, cooperando com as famílias para o bem-estar comum; adestra-nos na paciência, algo essencial nesse tipo de negócio, bem como na vida social. Enfim, diz-nos não tudo, mas parte essencial daquilo que foi a vida normal até a ascensão da ignorância coletiva e da brutalidade econômica como norma, onde o homem vale tanto quanto tem em sua carteira.

Acreditem: o bom atendimento, que é norma trivial de uma mercearia, acaba se incorporando à vida do homem. E assim é porque sempre foi necessário o império da gentileza no trato humano. Tudo que se vê numa transação dentro da mercearia não é apenas um conjunto de normas, mas algo sincero e cordial. A família se beneficia disso tudo quando recorre a este sadio meio como porto seguro de sua sobrevivência, podendo, por isso, ser considerado este o trabalho mais próprio para a família do que qualquer outro.

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