Miguel não está mais lá

Quando ligo para minha mãe, em meados do ano passado de 2019, ela insiste para que eu ligue para vovô. Ele está baquiado, meio doentinho, ficando velho. Oitenta e nove anos pesando, né? Digo para ela que vou ligar, mas nem confio que ele esteja mal, por conta da insistência dos nordestinos em exagerar as coisas, nem consigo realmente parar por conta de tanto acúmulo de trabalho: construindo a casa, cumprindo com deveres religiosos, com o primeiro filho, tocando uma editora, sendo professor e gerenciando uma empresa de café especial com mais três sócios. Era demais para mim.

Chega maio e minha mãe fala que meu avô piora e tem de ser hospitalizado. Acho que ainda é caso dele voltar para casa e durar mais alguns anos. Mas não. Vovô só piora. Vou acompanhando, até que um dia, quando na empresa de café marcamos uma reunião bem cedo com representantes do Rio de Janeiro, mato uma aula da escola com um dia de licença que tinha sobrando e aviamos a reunião. Pelo alto das nove da manhã, minha mãe me liga insistentemente e eu resolvo atender no meio da reunião, pois sabia que a ligação não seria à toa.

Mãe fala com a voz calma, baixinha, de perigo, e eu atendo já saindo do escritório: 

- Oi, mãe?
- Seu avô vai entrar na UTI. Antes que ele entre, consegui ficar do lado dele e vou passar para você dar umas palavrinhas. Mas fale com cuidado, pois ele vai ser anestesiado e não pode ficar emocionado.
- Tá bom.

Vovô atende com uma voz de brincadeira, como sempre fazia nas ligações. Peço a benção e ele me fala o "Deus te abençoe" repetido docemente há anos. Eu falo apressadamente que estou rezando por ele e acabo atropelando a pergunta que ele fez sobre como iam as coisas aqui. Ele responde depois com um "obrigado, meu filho" e eu vejo a voz dele embargada -- quase como na minha frente.

Confesso que fui pego meio que de surpresa, pois não esperava falar com vovô depois de mais de ano naquela hora e naquele momento.

A ligação é rápida e não tenho muito tempo. Tomo coragem e falo, algo que talvez poucos dos filhos dele tenha falado e nenhum neto tenha dito, com pouquíssima exceção: Vovô, te amo. Se sou quem sou hoje, é tudo por conta do senhor. Agradeço por tudo.

Pensei: pra quê covardia ou hipocrisia agora? Eu sei que vovô já está tomando seu rumo. 

Vovô agradece apressadamente com a voz de choro. Eu repito que estou rezando por ele e logo ele agradece e entrega o telefone a minha mãe. 

Chego em casa chorando, o que fiz já no momento da reunião, que segui ainda com os olhos vermelhos porque tinha de manter uma postura perante os representantes de café. Eles perceberam e perguntaram se estava tudo bem, dai falei que meu avô acabava de entrar na UTI e eles apressaram o fim da reunião.

Alguns dias mais tarde mãe perguntou o que eu tinha falado que fez vovô ter soltado algumas lágrimas. Confessei a ela que falei a verdade e que só tive aquela hora para dizer isso. Essa resistência que a minha geração paraibana, a última talvez a tê-la, em falar sobre o amor aos pais e avôs, é algo desse povo e disso não temos como escapar, nem desgostas ou orgulhar. A vida severa impõe seu estilo. Sabe lá Deus como consegui dizer isso a vovô, mas foi a melhor coisa e a mais triste que fiz na vida.

Minha mãe mandará fotos de vovô na UTI pra mim. Fico aterrado, pois o cenário nunca me passaria pela cabeça. Meu avô deveria desaparecer em um sono, num dia surpresa. Mas não foi o que aconteceu.

Morre com vovô um pedaço gigantesco de minha história e de minha família.

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